domingo, 23 de novembro de 2008

Auto-retratos por um terceiros


David-ho


"Tenho meditado e sofrido
Irmanada com esse corpo
E seu aquático jazigo
Pensando
Que se a mim não deram
Esplêndida beleza
Deram-me a garganta
Esplandecida: a palavra de ouro
A canção imantada
O sumarento gozo de cantar
Iluminada, ungida.
E te assustas do meu canto.
Tendo-me a mim
Preexistida e exata
Apenas tu, Dionísio, é que recusas
Ariana suspensa nas tuas águas."


Hilda Hilst

sábado, 22 de novembro de 2008

Poema do silêncio


imagem: David Ho


"Sim, foi por mim que gritei.
Declamei,
Atirei frases em volta.
Cego de angústia e de revolta.

Foi em meu nome que fiz,
A carvão, a sangue, a giz,
Sátiras e epigramas nas paredes
Que não vi serem necessárias e vós vedes.

Foi quando compreendi
Que nada me dariam do infinito que pedi,
-Que ergui mais alto o meu grito
E pedi mais infinito!

Eu, o meu eu rico de baixas e grandezas,
Eis a razão das épi trági-cómicas empresas
Que, sem rumo,
Levantei com sarcasmo, sonho, fumo...

O que buscava
Era, como qualquer, ter o que desejava.
Febres de Mais. ânsias de Altura e Abismo,
Tinham raízes banalíssimas de egoísmo.

Que só por me ser vedado
Sair deste meu ser formal e condenado,
Erigi contra os céus o meu imenso Engano
De tentar o ultra-humano, eu que sou tão humano!

Senhor meu Deus em que não creio!
Nu a teus pés, abro o meu seio
Procurei fugir de mim,
Mas sei que sou meu exclusivo fim.

Sofro, assim, pelo que sou,
Sofro por este chão que aos pés se me pegou,
Sofro por não poder fugir.
Sofro por ter prazer em me acusar e me exibir!

Senhor meu Deus em que não creio, porque és minha criação!
(Deus, para mim, sou eu chegado à perfeição...)
Senhor dá-me o poder de estar calado,
Quieto, maniatado, iluminado.

Se os gestos e as palavras que sonhei,
Nunca os usei nem usarei,
Se nada do que levo a efeito vale,
Que eu me não mova! que eu não fale!

Ah! também sei que, trabalhando só por mim,
Era por um de nós. E assim,
Neste meu vão assalto a nem sei que felicidade,
Lutava um homem pela humanidade.

Mas o meu sonho megalómano é maior
Do que a própria imensa dor
De compreender como é egoísta
A minha máxima conquista...

Senhor! que nunca mais meus versos ávidos e impuros
Me rasguem! e meus lábios cerrarão como dois muros,
E o meu Silêncio, como incenso, atingir-te-á,
E sobre mim de novo descerá...

Sim, descerá da tua mão compadecida,
Meu Deus em que não creio! e porá fim à minha vida.
E uma terra sem flor e uma pedra sem nome
Saciarão a minha fome. "



José Régio

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Enfim, ela também sabia o que era sentir isso...




"Tudo tem que ser bem de leve para eu não me assustar e não assustar os que amo. Pedem-me pouco, pedem-me quase nada. O terrível é que eu tenho muito para dar e tenho que engolir esse muito e ainda por cima dizer com delicadeza : obrigada por receberem de mim um pouquinho de mim."

C.L.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Apócrifo, das cartas não enviadas: a vontade de São Pedro



Lullaby Boy,

"I shut my eyes and all the world drops dead;
I lift my lids and all is born again.
(I think I made you up inside my head.)"
Sylvia Plath




Estou sentada na varanda, em trajes de banho, esperando a chuva cair. Quero livrar, ao menos por hoje, os meus cabelos do cloro da água encanada. Talvez, da rotina também.

Mas para isso é preciso paciência. Deveras.Acontece que essas pequenas coisas que têm o poder de lavar a alma são breves demais e qualquer distração pode dissipar nuvens,exibindo o gordo e velho sol. Então espero.



Os outros, bem verdade, não ajudam. Meu irmão já me disse para não esperar, que hoje não chove mais. Quem garante? Não, já não acredito em previsões do tempo, em trânsitos astrológicos ou em alarmes de incêndio. Num mundo ao avesso só é possível acreditar na própria vontade, transformando qualquer previsão em absurdo.

Assim, meu bem, se hoje me dissessem que eu encontraria você por alguma das ruas dessa cidade, colocaria o meu melhor vestido e sairia andando até que 'a luz dos olhos meus e a luz dos olhos teus' resolvessem se encontrar. E assim vingariam todos os clichês de todos os poetas de todos os tempos. E Peixes entraria na sétima casa, com fortes pancadas de chuva na área escura do mapa e com algum Nero pos-moderno tocando fogo em toda a cidade. Mas não importaria.

É, essa previsão seria magnifica, apesar de saber que você está a muitos quilômetros daqui.


Agora eu tenho que ir, começou a neblinar.

Ao menos a certeza de que estamos sob o mesmo céu me consola. E quem sabe?




quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Apócrifos, das cartas não enviadas: A moeda ou Das mulheres de meu Pai


D.Q,




"Se o mar tem o coral
A estrela, o caramujo
Um galeão no lodo
Jogada num quintal
Enxuta, a concha guarda o mar
No seu estojo .
Ai, meu amor para sempre
Nunca me conceda descansar.
Pai, o tempo vai virar
Meu pai, deixa me carregar o vento.
Vento.Vento. Vento."




Homem, que é de ti? De ti, que entre os treze optou por abandonar a calma. Quando nasceu, certamente e ainda sob o signo de um Deus antigo (ao menos em testamento), tua mãe te marcou com o sinal dos escolhidos. A ti e a tuas irmãs. Te marcou com a marca dela. Feminina. O teu pai, com todo o cuidado que se exige com um homem assim, te cobriu de cinzas para que não vissem o seu sinal. E você cresceu.
Seguiu teu caminho até encontrar uma fagulha. Ela te pôs fogo, não foi?
Ela queimou por quinze anos e virou brasa apagada. Sobrou pra mim: herdei a marca de tuas mulheres, meu pai. Você, querendo me poupar do destino dos que têm o silêncio como língua-mãe, me cobriu de cinzas e foi-se pelo mundo, semeando ventos e colhendo tempestades.
Eu só queria te dizer que hoje eu vi quando o vento soprou e afastou suas cinzas.
Eu só queria te dizer que eu também, pai, eu também.