No mistério o medo. No medo a curiosidade. Na curiosidade, desejo. No desejo? É como aquelas bonequinhas que cabem uma dentro de outra dentro de outra e outra e outra outra...Qual era mesmo o nome? Ah! Clarice...Não das bonequinhas mas da menina que as possuía: Clarice era como gaveta trancada em quarto de avó.
Era em passos pequenos, quase saltinhos de amarelinha sem riscos no chão, que Clarice menina brincava com os moleques de Amaralina. A-ma-ra-li-na. Uma daquelas cidades pequenas com as mesmas coisas que tem em toda cidadezinha: Moleque descalço, mulher de janela, jardim de sonho e ciranda, balão de são João, são José, são qualquer, são.
E a menina morena Clarice, pequena no sei jeito de não ser quase ninguém, fez com os moleques meninos caminhos de fruta e passarinho: Estilingue, calango, soim. Quintal do mundo (o mundo todo). Não por isso menos moça...Não por isso menos mulher: ainda quando os seios nem ousavam o despontar, quando entre menino e menina não havia diferença, Clarice jamais quis se despir entre os meninos e os peixes.
Feito matinho que vira roseira, Clarice menina virou moça de botões fechados: na gola e no punho. E não era de criação a seu recato de novena, igreja, procissão: De cabelos presos e pernas cobertas, rezava ladainhas... Que eram também dos rapazes, que repetiam como oração: "Que mistério tem Clarice?, que mistério tem Clarice? Pra guardar-se assim tão firme no coração?"
E guardou-se, Resguardou-se: A moça brotou mulher. Clarice fez-se penitente e dentro da noite escorrida açoitava, o que não sabia ela, era inocência.
Tem que um dia amanheceu e com ele Clarice, no cais, assistiu o meu barco se afastar de Amaralina. Destemperadamente linda, aos soluços, Clarice despiu-se como se o vestido sobre ela fosse só outra bonequinha que lhe cobria o corpo moreno.
Permaneceu em todo adeus chorando nua, para que eu lhe tivesse toda, todo tempo em que existisse. E choraria até que todo amor sumisse e seu corpo expirasse e seu pranto à extinguisse. A procissão repetia a ladainha: "Que mistério tem Clarice?, que mistério tem Clarice? Pra guardar-se assim tão firme no coração?"
Quando o dia fez-se noite e a noite fez-se anos, o mar fez de Clarice estátua de sal. Mais que história, fez-se lenda: entre os meninos e os peixes, guardados em uma caixinha que fica dentro d'outra caixa, escondida no armário da minha memória de Marinheiro do Tempo.
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6 comentários:
quem seria tal clarice, e que mistério guarda? Eu diria que é uma beeeela história
;)
eu não sou daqui também marinheiro
mas eu venho de longe e ainda
do lado de trás da terra
além da missão cumprida
...
doente da falta de voltar
.
a diferença é que ela, creio eu, não veio dar despedida.
ah, se eu fosse marinheiro...
isso me lembra Fernando Sabino, aquela coisa angustiante de não se saber exatamente quem se é... e vc também se escorre em tinta, não é só meu o privilégio
ah, esqueci de dizer: vai abrilhantar sobremaneira o nosso Canhotos.
esse conto é uma porrada na gente que escreve também. percebo um profundo acerto na escolha da linguagem que acompanha essa clarice-sempre-menina e que se fecha em si, porque tem um grande amor. você faz, muito apropriadamente, umas aproximações infantis e provincianas (como "meninos caminhos de fruta e passarinho: Estilingue, calango, soim" ou "entre os meninos e os peixes"). sem dúvida, uma das melhores coisas suas que eu já li.
Matriosca é o nome da boneca que comporta outras bonecas, e é de origem russa.
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